Processando recicláveis após as restrições chinesas para a importação de sucata e rejeitos

Descarte

Entre os anos de 2017 e 2018, a China – antes o grande importador de todo o tipo de material reciclável no mundo – impôs severas barreiras à entrada de rejeitos. Por decreto, o governo chinês restringiu a importação de sucata, apara, ou reciclável, desfazendo uma indústria que envolvia o mundo inteiro.

No verão de 2017, a China notificou a Organização Mundial do Comércio (OMC) de uma decisão que afetaria a logística e a industrialização no mundo todo. Em princípio, foram banidas ou reduzidas as cotas de importação de 24 categorias distintas de sucatas e rejeitos – incluindo materiais plásticos ou papéis que os chineses adquiriam em lotes sem separação.

Por certo, as restrições chinesas são um dos fatos mais importantes e impactantes do comércio internacional nos últimos dez anos. A opinião pública ainda não absorveu por completo as consequências dessa modificação nas cadeias globais de fornecimento, mas em breve o fará. O tema já é abordado por revistas, livros e até documentários, como o recente “Broken”, uma produção do Netflix, que em um dos seus episódios trata exatamente da questão dos plásticos – algo que se agravou com as limitações impostas pelo governo chinês.

O fim de uma prática

Países como os Estados Unidos e mesmo gigantes europeus, como a Alemanha e o Reino Unido, vinham havia anos praticando um fluxo de produção simples e confortável. Afinal, a China adquiria grande parte dos materiais recicláveis, mesmo sem necessidade de categorização e seleção. Cerca de 40% dos papéis, plásticos sem especificação e outros recicláveis de eletrônicos, metais e até madeira seguiam diretamente para a Ásia.

Essa “rota comercial” facilitava a logística reversa americana, impedia o acúmulo de determinados tipos de materiais plásticos e à base de celulose que não são recicláveis e criava valor, onde haveria gastos.

Para os chineses, esse material barato abastecia uma imensa gama de indústrias especializadas no seu processamento e na conversão dos itens recicláveis em produtos que seguiam novamente para o exterior e para o mercado interno.

Por mais de uma década, indústrias dos países desenvolvidos cresceram e aumentaram a produção com o apoio de uma solução barata de logística reversa. Como resultado dos chineses na coleta dos descartes, o setor de recicláveis não se desenvolveu na América do Norte, Europa e outros pontos do mundo, ao menos não em passo suficiente para acompanhar o restante da indústria.

Quais as consequências da decisão chinesa

Em primeiro lugar, a emergência imediata de processamento desses rejeitos levou a soluções paliativas que acabaram por criar mercados paralelos e a “lotar” outros pólos de reciclagem asiáticos, na Malásia, Indonésia, Vietnã e outros países.

Mas, mesmo com o suporte de alguns outros locais passíveis de receber tamanho volume de recicláveis, americanos e outros povos se depararam com a necessidade de, no horizonte de poucos anos, criar uma base para o processamento de cerca de 60 a 70 bilhões de toneladas de material de descarte e recicláveis.

Na atual conjuntura, as empresas de diversos países lutam e discutem com os respectivos governos uma situação que exige uma de duas atitudes:

  1. O excesso de rejeitos precisará ser coletado e inserido na cadeia de logística reversa a um custo enorme e desproporcional
  2. Ou esse mesmo excesso, especialmente no tocante a materiais de baixa reciclabilidade, precisará ser descartado e acumulado em algum lugar

A logística reversa no Brasil, já há quase uma década, trouxe à tona essas mesmas preocupações. Embora o setor de sucatas no país tenha um porte considerável, a verdade é que a maior parte dos fluxos de reciclagem industriais ocorrem entre indústrias – sobras e aparas “virgens” são o grosso do volume reciclado no Brasil, em qualquer setor.

Estados Unidos à beira de uma reestruturação de toda a economia

Não é exagero. Segundo um estudo chamado “Wate Dive”, pelo menos 10 estados americanos foram afetados de modo drástico e perceptível, surpreendentemente, mesmo nos mais gerais índices econômicos. Massachusetts, Carolina do Norte e Califórnia entre eles.

Em meio a um estado de emergência, toda sorte de soluções improvisadas e paliativas parece ter vindo à tona. Cada setor e estado parece estar “fazendo o melhor”, ainda que as práticas não sejam as mais elogiáveis:

  • Na Filadélfia, quase metade dos recicláveis coletados são diretamente incinerados, ao invés de sofrerem qualquer processamento
  • A cidade de Mineápolis, com cerca de 3 milhões de habitantes, não mais aceita plásticos de cor negra nos seus programas de coleta
  • No estado de Michigan, coletores e processadores deixaram de aceitar 11 categorias de materiais recicláveis

Embora as campanhas das últimas décadas tenham levado o consumidor final a separar e categorizar o seu lixo, a verdade é que agora muito desse material sequer começa a ser reciclado.

A isso somam-se práticas não intencionais por parte do consumidor, pontos de coleta e empresas que realizam o transporte desse material. Cerca de 25% dos recicláveis coletados nos EUA não podem passar por processos normais de industrialização devido a contaminações. E, claro, descontaminar esse material implicaria em ainda mais custos.

Há saídas para isso?

Bem, os problemas relacionados à viabilidade de material reciclável no mundo passam por dois eixos principais:

  • A logística
  • E a tecnologia

Logisticamente, toda vez que um material reciclável tem um custo de transporte, coleta e separação superior aos preços do produto final reciclado, ele é descartado. A China sustentou esse mercado por diversos anos exatamente pelos baixíssimos preços que chineses pagavam pela sucata sem especificações e, de outro lado, seu também baixíssimo custo de industrialização e processamento.

Ao processar os recicláveis nos países de origem, por mais que possa parecer um contrassenso, indústrias pagam muito mais caro pelo reciclado final. Isso ocorre porque indústrias pagam muito mais caro pelo reciclado final. Porém, a logística não é o único problema que envolve a recuperação dos recicláveis – a falta de tecnologia é outro deles.

Quando dizemos tecnologia e inovação, queremos dizer processos tecnológicos que permitam a reciclagem de todo o tipo de material. Contudo, apenas reciclar não basta: isso tem de custar pouco.

A verdade é que muitas “conquistas” alardeadas por algumas indústrias no mundo não possuem grande teor tecnológico. Por exemplo:

  • Cerca de 70% da composição dos papéis reciclados de imprimir e escrever envolvem as chamadas “aparas virgens”, ou seja, sobras de produção no corte e refile de papéis nas próprias indústrias. Os papéis recuperados ou que passam por “catadores” representam um volume ínfimo no processo industrial dos papéis reciclados.
  • Materiais de alta reciclabilidade ainda são pouco reciclados, como é o caso da madeira e do óleo vegetal.
  • Em alguns segmentos específicos, em momentos específicos, a produção a partir da sucata ou aparas pode ser mais cara do que a produção primária, a partir dos insumos iniciais. Isso acontece, por vezes, em segmentos como o siderúrgico ou o petroquímico.
  • Nem tudo é reciclável, ao menos de forma economicamente viável. Por exemplo, das 7 categorias de plásticos e polímeros separadas nos rejeitos plásticos, apenas as categorias 1, 2 e 5 são de fato reindustrializadas.

Oportunidades à vista

Claro, onde há problemas, há também oportunidade. De fato, os Estados Unidos hoje oferecem, seja em termos mercadológicos ou mesmo em relação aos incentivos governamentais e fiscais, grandes oportunidades para as novas capacidades de processamento nos recicláveis.

Do mesmo modo, à medida que outros países de fato resolvem seus problemas, acabam por se tornar mercados-alvo dos rejeitos e da sucata daqueles que ainda estão resolvendo a casa. Qualquer que seja, as oportunidades são tão grandes quanto o problema, mas uma coisa é certa: a reciclagem precisa de um NOVO MODELO.

O mercado norte-americano, sem dúvida, continuará a evoluir. Entretanto, a questão é até que ponto essa evolução ocorrerá rumo à sustentabilidade e à independência da indústria local ou apenas em resposta às restrições do mercado chinês.

O novo modelo precisa livrar-se, o mais rápido possível, das soluções paliativas, como as do Sudeste Asiático. Além disso, a indústria e os governos locais precisam criar políticas que não apenas afetem os recicláveis em si, mas também outros tipos de resíduos. Em qualquer parte do mundo, os aterros e áreas de descarte são um problema ambiental, urbano e infraestrutural.

O investimento no processamento de resíduos, portanto, é uma necessidade econômica com aspectos locais, regionais e também globais e precisa ser encarado como estratégico em qualquer parte do mundo.

Nos Estados Unidos, infelizmente, a pulverização das esferas de decisão nos estados e mesmo nos condados leva a crer que soluções amplamente inovadoras ainda deverão, por um bom tempo, coexistir com soluções paliativas em outras regiões, muitas vezes vizinhas.

Quer saber ainda mais sobre o assunto? Artigo recomendado: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/04/o-que-fazer-com-o-lixo-que-a-china-parou-de-comprar.shtml

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